Silvie Eidam
O salto para o impossível
Silvie Eidam se enfiou no cerrado. Está morando numa das últimas ruas do mais longínquo dos condomínios erguidos no Jardim Botânico. Seu alpendre se abre para a natureza. E os cachorros que se espalham pela morada atendem educadamente o chamado da dona.
Ela não montou propriamente um ateliê, mas este alpendre tem lhe servido bem, e os cachorros lhe fazem companhia. Silvie já aprendeu os truques da luz que bate aqui de tarde, sabe a melhor hora para pintar. Tomando o cuidado, na época de chuva, de recolher as telas para perto da parede, protegidas das rajadas que o vento traz.
Mas Silvie Eidam deu agora para pensar na morte.
Investigar a morte. Espiritualmente e carnalmente. Pintar a morte. Tem feito pesquisas de campo para acompanhar as implicações biológicas sofridas por um corpo animado ao perder a vida. E tomou gosto de ouvir narrativas de true crime.
Quando perguntada sobre o novo tema — por que morte? — justo agora cercada por plantas e cachorros — respirando o ar limpo e pintando sob a luz do cerrado — Silvie acredita que tenha a ver com aqueles dias em que, do alpendre de casa, pôde ouvir bem próximo o som das motosserras derrubando mais um naco de cerrado, deitando ao solo mais um punhado de árvores, abrindo espaço para as cimentadas benfeitorias do condomínio.
Suas pinturas feitas sob a trilha sonora das motosserras eram cenas de floresta — árvores e raízes — e não atendiam exatamente ao que Silvie Eidam estava buscando, eram respostas imediatas que não apaziguavam seu incômodo.
Ao passar do cenário metafórico da floresta para o retrato realista de uma figura humana no leito de morte, Silvie sentiu que estava começando a tatear o que de fato lhe interessa. O retrato como um ricto de morte. Os olhos fechados, a boca aberta num último suspiro. As mãos crispadas sobre o peito. Silvie encontrava o título da série de trabalhos que ali se deflagrava: Rigor mortis.
Deu então o salto entre a figuração realista e a autorrepresentação. Rigor mortis se abriu para ela numa série de performances registradas em fotografia e desdobradas em novas pinturas.
Silvie Eidam assume agora o centro da cena. Seu rosto está coberto por um tecido. Mas as suas mãos estão livres e nuas. Estão vivas. Silvie movimenta as mãos, gesticulando como quem dança sozinha, como quem esculpe o ar. Como quem está a roçar o lado de lá do impossível.
A primavera é apenas um curto interlúdio, seguido por um poderoso exército de morte que já está cercando os muros das cidades. Vivemos cercados. Se examinássemos de perto cada fragmento de um instante, nos engasgaríamos aterrorizados. Nosso corpo passa por um incessante processo de desintegração, em breve adoeceremos e morreremos. Nossos entes queridos nos deixarão, a recordação deles se dissipará na agitação; não sobrará nada. Apenas algumas roupas no armário e alguém numa foto, já irreconhecível. As lembranças mais preciosas se desvanecerão. Tudo tombará na escuridão e desaparecerá.
(Olga Tokarczuk, Sobre os ossos dos mortos, 2009)