Josefa Feitosa, a mochileira cearense de 64 anos que visitou mais de 60 paĆses
- Paola Antony
- 19 de jun. de 2024
- 5 min de leitura
Narayana Teles
āEu me sinto uma pessoa com coragem, eu quebrei a barreira do medo, eu quebrei essa cultura do patriarcado e estou no mundo, vivendo. Vivendo de um jeito que a mulher jamais poderia viverā

Ā Ela nĆ£o sabe ao certo a quantidade exata de paĆses que jĆ” conheceu, a lista passa dos 60. Viajar pelo mundo com uma mochila nas costas Ć© algo que ela faz com naturalidade. Estamos falando de Josefa Feitosa, JĆ“, como gosta de ser chamada. Uma mulher preta, cidadĆ£ do mundo, que ama gente por atacado e varejo. Vive e mora onde a mala estĆ”. Ć dessa forma que se autodescreve. Em outubro de 2024, serĆ£o 8 anos de viagens realizadas em diversos continentes por uma jovem senhora de 64 anos.
Ā āSó existem duas idades: viva e morta.
O tempo passa e a gente sente uma urgĆŖncia de viverā.
Ā
Essa urgĆŖncia de viver Ć© sentida por JĆ“ desde crianƧa, quando ainda morava em Juazeiro do Norte, CearĆ”. A vontade de conhecer o mundo surgiu na infĆ¢ncia, a partir de seu pai, quando ele ouvia no RĆ”dio o noticiĆ”rio āA Voz do Brasilā. Ali, a pequena JĆ“ sabia que existia um mundo bem maior do que ela conhecia no interior do CearĆ”, na cidade de Juazeiro do Norte, estava para alĆ©m do ir e vir das pessoas na estação de trem, que ela adorava frequentar com seu pai para admirar as pessoas que transitavam entre as plataformas.
Ā
āEu morei no meu pensamento. Sempre existiu essa vontade de querer ir embora, de conhecer o mundo. De um dia pegar um pau de arara de romeiro, que andava pelo Juazeiro, no CearĆ”, e ir emboraā, recorda JĆ“.
Ā
Por mais de 30 anos, trabalhou como assistente social no sistema penitenciĆ”rio cearense, onde, de maneira lĆŗdica, realizou atividades, como a construção de fanzines. Nos papĆ©is, histórias de pessoas privadas de liberdade, representadas por palavras e imagens. Com a caneta em mĆ£os, um pouco de liberdade era proporcionada aos internos e internas do sistema prisional. No entanto, a liberdade era mais que isso. Para JĆ“, significava movimento, nĆ£o o movimento da caneta no papel, mas o movimento do portĆ£o ao ser aberto e essas pessoas saĆrem para onde quiserem, em liberdade. Foi assim que ela percebeu que existiam outras prisƵes de portas abertas, uma delas era a sua própria casa. Um lugar onde era obrigada a estar, mas que nĆ£o gostava porque nĆ£o se identificava com os afazeres domĆ©sticos. Se sentia Ć vontade na rua, vendo o mundo acontecer, olhando as pessoas.
Ā
Educou seus três filhos. Cuidou de sua mãe, que tinha Alzheimer. Ajudou na criação do neto. Se aposentou em 2016. Vendeu carro, casa. PÓs seus sonhos em uma mochila e saiu pelo mundo. De lÔ pra cÔ, rotas, mapas. A cada passo dado, o mundo que sai do lugar, parafraseando o artista pernambucano Siba.
Com um vocabulĆ”rio de 100 palavras e sem saber colocar os verbos nos tempos certo, JĆ“ morou na Irlanda, na Ćfrica. Conheceu pessoas e seus lugares. Dessa forma, saiu da rota turĆstica e passou a desfrutar momentos singulares, como a ida a locais frequentados apenas por nativos, que faziam questĆ£o em compartilhar as belezas de seus locais com ela. Na Ćfrica do Sul, por exemplo, JĆ“ sentiu pisar em seu chĆ£o. A culinĆ”ria era bem parecida com a brasileira e ela via muita gente preta: no outdoor, na novela, na algazarra de vĆ”rios meninos com seus cabelos que pareciam obra de arte. Foi morando em lugares que a acalantavam, com pessoas que a convidavam a ficar. Passou um tempo em Kwazulu-Natal, terra dos Zulus, onde de uma janela, em frente ao mar, avistou baleias migrando para o Brasil. JĆ“ enche os olhos ao recordar a cena e revela:
āPretendo conhecer o JapĆ£o, a AustrĆ”lia. Quando eu der a volta ao mundo vou revisitar alguns lugares onde fiz amizades. Ć muito fĆ”cil viver. Ć delicioso nĆ£o ter boletos. Eu nĆ£o preciso fazer contas. Eu me sinto uma pessoa com coragem, eu quebrei a barreira do medo, eu quebrei essa cultura do patriarcado e estou no mundo, vivendo. Vivendo de um jeito que a mulher jamais poderia viver porque era considerada mundana, prostitutaā. Ā
JÓ comenta que vivia para os outros, e, que, ao se aposentar, decidiu viver para si. Se deu a oportunidade de ser sua própria cuidadora, suprir suas necessidades, ter paz, carinho, adquirir conhecimentos. Confessa ter ficado estagnada muito tempo. Não sabia quem ela era porque não havia tempo para isso, havia gente demais para cuidar.
No ano de 2020, durante a pandemia da COVID-19, morou em um povoado na Chapada Diamantina, Bahia. Momento de pausa, de pouso. Foi quando viajou para dentro de si mesma. Cansada de seu cabelo branco, pintou ele de azul. Fez sucesso no povoado. āA senhora Ć© do circo?ā, as crianƧas perguntavam. āTem uma idosa de cabelo azul que precisa tomar a vacinaā, alertou um morador Ć moƧa que trabalhava no Posto de SaĆŗde.
āEu nĆ£o tenho muita idade, eu tenho Ć© muita vida.ā
JĆ“ Ć© Ćŗnica em suas frases. Inventiva e bem-humorada. Tudo a impulsionou a ser o que ela Ć© hoje: uma pessoa que segue o fluxo da vida, que aceita o vir, de modo natural, com leveza, deboche (ela Ć© de aquĆ”rio), que nĆ£o tem medo de gente, que aprendeu a olhar as pessoas e enxergĆ”-las, e, que, merecidamente, estĆ” sendo homenageada em vida. No dia 15 deste mĆŖs, estreou na cidade de Fortaleza/CE, o monólogo āEgoĆstaā, inspirado em sua trajetória. A peƧa irĆ” para o Rio de Janeiro no mĆŖs de julho, encenada pela atriz cearense Ana Marlene e sob direção de Juracy de Oliveira. Para quem comeƧou a andar pelo mundo, despretensiosamente, apenas com vontade de viver, ser a personagem principal de um espetĆ”culo em Fortaleza/CE Ć© uma honra, declara JĆ“.
Ao fazer a seguinte pergunta: o que que a gente leva dessa vida, JĆ“, o que vocĆŖ carrega em sua mochila?
āPreciosidade dos meus momentos, de encontros com pessoas, comigo mesma. SĆ£o momentos de alegria, do prazer de estar ali, naquele lugar, que Ć© indescritĆvel. Ć isso que quero ter da vida, coisas que eu possa levar comigo. NĆ£o quero carro, roupa, nada. Apenas ser infinitamente feliz.ā
JĆ“ Ć© livre e possui o bem mais precioso da humanidade: tempo. Ela Ć© a prova mais contundente de que nĆ£o existe idade certa para (re)comeƧar. Sabe aquela pergunta boba: o que vocĆŖ quer ser quando crescer? Eu trocaria por: quem vocĆŖ vai ser quando crescer? Eu quero ser uma JĆ“. Bem que ela poderia virar um adjetivo, ou um verbo, talvez um sinĆ“nimo. Como diz Marina Lima: āDescubra de verdade o que vocĆŖ ama e o mundo pode ser seuā.
EvoƩ, JƓ!
Ā
A RÔdio Eixo conta com o fomento do FAC - Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal
Ā
Para ouvir a matƩria, acesse: https://soundcloud.com/radioeixo/narayana-teles-josefa-feitosa?in=radioeixo/sets/jornalismo-radio-eixo