Cortejo de Congadas colore as ruas de São Jorge no Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros
Paola Antony
Um batuque veio se aproximando da rua principal de São Jorge por onde passeavam os turistas. Ouvia-se perfeitamente o som dos tambores. Era fim da tarde e frequentadores circulavam por entre as ruas de terra. O pó vermelho subia pelos ares. A comunidade local se mostrava envolvida com as apresentações do Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros.
Cheguei na vila depois de uma trilha feita com amigos e nos sentamos à mesa do restaurante de Dona Valdete. De lá, ficamos escutando o batuque até ele se aproximar com toda a sua potência, e para nossa surpresa, com uma explosão de cores. Passavam em cortejo, por nós, os Congadeiros. Eles vinham com suas vestes alegóricas e estavam lindos! Homens e mulheres de todas as idades, formavam os grupos. De idosos a crianças. Praticamente todos pretos, negros ou pardos.
Os transeuntes se afastaram para que pudessem passar os cinco grupos que vieram de lugares diferentes do Brasil. Cada um com sua peculiaridade. Uns brincando e dançando, outros mais solenes, mas todos cantando e tocando seus instrumentos.
Eram o Terno de Moçambique do Capitão Júlio Antônio, de Minas Gerais; o Congo de Catalão, de Goiás; a Congada de Monte Alegre, Goiás; o Congo Panela de Barro do Espírito Santo, e o Reisado dos Irmãos, do Ceará.
Eu não conhecia nenhum dos grupos e fiquei impactada com a força cênica e musical deles. Parei para observar. Notei que a energia brincante vinha dos jovens e adultos e que os senhores e senhoras de idade mostravam nitidamente um papel de destaque. As crianças vinham ao lado dos mais velhos e os congadeiros vibravam. Uns sorrindo, outros mais sérios, eles exibiam suas habilidades musicais, executavam coreografias e nos apresentavam, orgulhosos, suas tradições culturais.
Assim como eu, os visitantes da Vila de São Jorge correram para a rua com seus celulares em punho. Astros e estrelas de um Brasil profundo foram reverenciados por moradores e turistas.
De lá, o cortejo seguiu por outras ruas, e eu, entusiasmada com o que acabava de assistir, recorri à internet para buscar informações. Encontrei um artigo acadêmico de Jakeline Carvalho e Wuiragana Ramos com a seguinte explicação: “A Congada é um rito milenar originado na África e introduzido no Brasil com a chegada dos primeiros escravos, tendo como finalidade manter suas tradições. Ela homenageia seus antepassados, seus reis, suas divindades e seus anciãos. Aos poucos foram inseridas santidades com o objetivo de que o rito fosse aceito pela Igreja Católica”...“No Brasil, a congada é comemorada em diversos estados, sempre demonstrando as simbologias que é representada, em vestimentas, danças afros e coreografias que dramatizam a luta e história dos negros através de som de instrumentos musicais simples, como tambores maracanãs (caixas grandes) e o ripiliques (caixas pequenas), latinhas amarradas ao pé, bastão que significa o poder de superar as crises espirituais e principalmente as doenças. O motivo da comemoração é sempre o mesmo: homenagear santidades católicas. O que muda são as santidades escolhidas por cada região”.
Lido isso, segui para a casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, palco principal do evento e para onde o grupo havia se destinado. Lá, brechando entre cabeças, assisti as apresentações e encontrei o amigo Volmi Batista. Volmi é violeiro, produtor e pesquisador da música caipira e da cultura popular tradicional.
Claro que não resisti e perguntei a ele sobre a musicalidade dos congadeiros; o porquê daqueles instrumentos, o porquê daquele tipo de canto em que uma pessoa fala e todos repetem e ele me respondeu assim: “A música do congado é pura fé. O elemento principal dessa manifestação é a fé e a reverência às culturas africanas e afro-brasileiras, principalmente no centro-sul do Brasil. Em relação a musicalidade, a percussão é a base e não seria diferente, em função da ligação com as manifestações africanas no Brasil. Já quanto a presença de instrumentos alheios a essa tradição afro, eu observo que isso vem acontecendo em diversas manifestações de cultura popular brasileira. A viola está mais presente na região centro-sul, nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Já a sanfona é realmente uma alienígena nessa manifestação. Mas o fato é que hoje, a sanfona está muito integrada a essas manifestações. E outra questão importante é que aqui, em São Jorge, a gente pôde ver a diversidade que está dentro da manifestação chamada Congado.
Aqui nós tivemos o Congo, o Moçambique e a Marujada. Pelo menos 3 expressões desse universo da congada. Ainda tem o Catopé e o Caboclinho. É uma diversidade muito grande. Nós tivemos a felicidade de poder presenciar pelo menos essas três manifestações. Umas mais alegóricas e outras, como o caso do Moçambique do capitão Júlio Antônio, que é fabuloso, mais centrada na questão religiosa, com uma indumentária e um instrumental mais típico da congada. Eles se utilizam, por exemplo, o passaguá, que os outros grupos não usam. Já na congada da cidade de Goiabeiras, do Espírito Santo, eles usam o rapa-pau, que os outros grupos não tocam. São, portanto, de uma riqueza fabulosa essas apresentações”.
Concordei com Volmi, ainda que tenha me dado conta que sei muito pouco. Mas é um começo, pensei.
No mais, e antes de terminar de contar como foi um dia no Encontro de Culturas tradicionais, deixa só eu esclarecer que essa sanfona alienígena, a qual Volmi se refere, foi trazida pelo Terno Vilão do Congo de Catalão, Goiás. E esse sanfoneiro arrasou!
Outra coisa que me chamou atenção, por ser diferente dos demais, foi um personagem cômico, uma espécie de bufão no Reisado dos Irmãos, do Ceará. Soube, também pelo Volmi, que é o palhaço do reisado, aquele que nem o mestre controla. Tem a cara pintada de preto e usa a cafuringa, um chapéu em formato de cone. Hilária a figura. Muito divertida.
Já de noite, pensando neles enquanto atravessava os 37 quilômetros que separam São Jorge de Alto Paraíso, depois de ter relaxado nas águas verdes do Rio São Miguel e ter assistido ao espetáculo que acabo de contar, senti um orgulho danado desse Brasil de dentro. Dessa gente bonita que mantém viva sua história e tradição ao celebrar a vida e a fé.
A rádio Eixo conta com o fomento do FAC – Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal
Para ouvir acesse o link https://soundcloud.com/radioeixo/congada-um-dia-no-encontro-de-culturas-tradicionais-da-chapada-dos-veadeiros?in=radioeixo/sets/jornalismo-radio-eixo
· Artigo de Jakeline Carvalho, Wuiragana Ramos. Uma abordagem sócio-antropológica para o turismo: um estudo sobre a congada. https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/gt6-uma-abordagem.pdf
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