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Cobra boa é cobra viva.

Paola Antony

Atualizado: 1 de fev.

Uma conversa com Guilherme Barroso, biólogo especialista em serpentes.

Paola Antony



Guilherme Barroso e a cobra da espécie Caninana.


Eu matei uma cobra, uma única vez.

Ela era pequena, talvez filhote, não sei dizer ao certo. Aconteceu num momento em que estava sozinha em minha casa, na Chapada dos Veadeiros. Ao sair para buscar alguma coisa, que já não me lembro o quê, me deparei com ela num cantinho do chão, pelo lado de fora da janela da cozinha e entrei em pânico. É provável que ela também. Por instantes fiquei na dúvida do que fazer. Mas o medo falou tão alto que a matei.  Isso porque eu, sozinha ali, imaginei em segundos que ela iria me perseguir, me picar, me matar.

A bichinha fez de tudo para não morrer. Foi horrível. Eu passei do medo para a compaixão. Tremia mais que vara verde e acabei aos prantos por tê-la matado.

Ao comentar esse episódio com amigos, me disseram que pela Chapada mora um rapaz especialista em resgate de cobras e eu anotei seu contato.

Muito tempo depois, eu novamente sozinha, vi outra cobra por ali, desta vez ela andava no sentido contrário da casa, era grande e eu também levei um baita susto. Já não pensava mais em matar, mas também não queria ela por lá. Foi então que conheci Guilherme, o tal rapaz que resgata cobras.

Guilherme Barroso é biólogo, especialista em serpentes. Um cara muito gente fina que chegou com o coração aberto para os dois lados. O da cobra e o meu. Praticamente um herói.

E nesse dia, mesmo não encontrando mais a tal cobra que por ali passeava, Guilherme me explicou uma série de coisas incríveis sobre elas, que mudou minha relação com o animal e comigo mesma.

Pois é essa figura tão especial, que está aqui hoje conosco, na Rádio Eixo. Guilherme veio, desta vez, falar para você que esse medo é desnecessário, que as serpentes merecem o nosso respeito, e também para dar dicas de como você pode se comportar em situações semelhantes a essas que te contei.


Vamos lá.


Eu sou Paola Antony.


Guilherme Barroso, bem-vindo!  Obrigada por topar essa conversa.

Se apresente, por favor.


Guilherme Barroso_ Sou Guilherme Barroso, biólogo, professor e brigadista florestal aqui na Chapada dos Veadeiros. Outro trabalho, que desenvolvo aqui, é o de resgate de fauna com foco em serpentes, que é minha especialidade.

Eu cheguei nas serpentes, primeiro, pela admiração que sentia por elas desde pequeno. Mas sentia medo também, por desinformação. Aí, durante a graduação, eu peguei uma disciplina, chamada “Venenos animais”, e ali eu pude estudar mais a fundo as serpentes. Aquela admiração que eu tinha aumentou e eu entendi que somente algumas poucas cobras podem oferecer perigo, e que a grande maioria é inofensiva para a gente. Uma vez terminado o curso eu pensei no que poderia fazer, em algo que tivesse a ver com minha paixão, no caso, as serpentes. Aí percebi que aqui, na Chapada, ninguém fazia esse trabalho de resgate de fauna e eu comecei a fazer, em especial de serpentes, porque são animais muito mal vistos.

O ditado popular diz que “cobra boa é cobra morta” e eu então pensei ao contrário, “cobra boa é cobra viva”, que é o nome do meu projeto. E aí, através dos resgates e do trabalho em educação ambiental, eu vou mostrando para as pessoas que elas são importantes. Elas têm um papel ecológico e também desempenham um papel importantíssimo dentro da farmacologia, do desenvolvimento de novos remédios. A toxina desses bichos é muito rica em vários componentes. Muitos deles se mostram eficientes para auxiliar a saúde humana, a nossa qualidade de vida.


Paola Antony_ Que legal! Guilherme, já que a maioria delas é inofensiva, porque será que as pessoas têm tanto medo de cobra, então?


Guilherme Barroso_ Acho que tem muito da questão cultural e religiosa. A cultura cristã prevalece entre nós, e com todo respeito a toda crença, a gente vê que tem passagens na bíblia, como aquela em que a cobra atentou Eva, que fazem com que as pessoas pensem em cobras como bichos malignos, traiçoeiros, do diabo. Aí a pessoa mata por isso. Vê uma cobra e não quer nem saber se é peçonhenta ou não. E o outro fator é que algumas poucas espécies são peçonhentas. Mas é bom frisar que a função primária do veneno das cobras é para abater suas presas e se alimentarem. Mas essa peçonha pode ser usada secundariamente também como defesa. Só que elas só irão se utilizar desse ataque, caso se sintam ameaçadas. Se forem pisadas, por exemplo, elas irão se defender. Então pelo fato de algumas serem peçonhentas e letal para o ser humano, torna-se um outro ponto que colabora para que as pessoas sintam esse medo exagerado por cobra.

Tem ainda os mitos e lendas. São histórias contatas por antigos que acabam povoando o imaginário popular e aumentando esse medo. E a grande maioria desses mitos e lendas não condiz com a realidade, e acabam contribuindo com a matança desnecessária desses bichos. Ou seja, a falta de conhecimento acaba promovendo a matança e o medo exagerado. Mas eu que convivo com elas há algum tempo e nessa época de chuva, quase que diariamente, a gente começa a ver verdadeiramente esses bichos. Uma coisa legal de falar é que muita gente que tem medo de cobra nunca viu uma em seu habitat natural, não sabe como é o comportamento dela. Tem medo por causa dessas histórias que falei. Mas a gente que conhece vê que eles não são esses monstros de sete cabeças, não.

É o seguinte: não é nem um pouco interessante para elas gastarem esse veneno com a gente. Para produzirem o veneno, o gasto de energia é grande. Então porque elas irão ter um gasto de energia tão grande com algo que não faz parte da alimentação delas? E elas são mais inteligentes do que a gente pensa. Quando elas vêm uma pessoa se aproximando, um animal de grande porte, elas interpretam como sendo um predador, então grande parte delas vai entrar no modo defensivo, vai se enrodilhar, preparar um bote. Mas quando ela percebe que não somos ameaça, elas desarmam esse modo defensivo. Ou seja, elas entendem o que é o perigo e o que não é. E não sendo um perigo, elas desarmam e passam a nos ver como um bicho comum e voltam a se comportar naturalmente.


Paola Antony_ Então vamos pensar numa situação hipotética: a pessoa está em sua varanda e vê a cobra passando. O que ela deve fazer?


Guilherme Barroso_ Se a gente está num ambiente natural, se estamos fazendo uma trilha na natureza e encontramos uma cobra se deslocando, você pode ficar parado onde você está e deixar ela se deslocar livremente. Ela segue o caminho dela e você o seu. Já se o animal estiver parado no meio da trilha, provavelmente ela está em repouso – geralmente as cobras, que são noturnas, durante o dia ficam em repouso para sair em atividade durante a noite – ou então ela está pegando um sol para se aquecer e fazer sua termorregulação. Então, se esse for o caso, é só você contornar a cobra, de um a dois metros de distância, que está tranquilo. Segue seu caminho e deixa o animal ali, na dele. Porque como falei não acontece de ela ir atrás do ser humano para picá-lo. 

Agora, se a situação for em área urbana, como por exemplo no quintal de uma casa, aí eu já recomendo, se for aqui na Chapada, que me liguem, que eu me dirijo até o local para fazer o resgate e encaminho o animal para uma área de cerrado, longe do perímetro urbano.  Se for numa cidade grande, geralmente quem faz esse serviço é a polícia ambiental ou bombeiro. Aí é entrar em contato com eles e pedir que façam a remoção do animal.

 

Paola Antony_ ótimo! Esclarecedor. E caso ocorra de uma pessoa ser picada por uma cobra, Guilherme, num caso desses de pisar nela sem querer, ela tem que saber que cobra foi, para, ao chegar ao hospital, dizer?

 

Guilherme Barroso_ Não necessariamente. Se for possível fazer uma imagem da cobra com celular é bom, porque facilita e identificação do tratamento, mas se por algum motivo, a pessoa não conseguir fazer essa imagem, é melhor não perder tempo e ir direto ao hospital, porque chegando lá, pelos sintomas, o profissional de saúde vai conseguir identificar qual foi o acidente. Cada tipo de acidente tem um sintoma, por exemplo, a cascavel tem um veneno de ação neurotóxica, ele vai atingir o sistema nervoso, então no local da picada quase não vai ter alteração, não vai ter inchaço, dor ou sangramento. A pessoa picada vai ficar com cara de bêbada, fica com dificuldade de abrir os olhos, de deglutição, a visão fica turva, porque foi atingido o sistema nervoso. Já no acidente com jararaca, o efeito local é muito evidente. É o inchaço, o sangramento, a dor. Então, pelos sintomas, o profissional de saúde vai saber identificar o acidente e aplicar a soroterapia específica para cada tipo.

Já quanto aos primeiros socorros, a primeira coisa a fazer quando uma pessoa for picada é acalmar ao máximo a vítima. Quanto mais nervosa ela ficar, mais acelera o batimento cardíaco e consequentemente mais rápido se espalha o veneno. Depois você vai higienizar o local, se possível com água e sabão. Se não tiver sabão só agua já ajuda. Porque a boca desses bichos é cheia de bactérias. Então higienizando o local você já evita uma infecção. Outra coisa é hidratar bastante a vítima. Antigamente achava-se que a água ajudaria a espalhar o veneno só que isso não condiz com a realidade. Aí dirija-se ao hospital o mais rápido possível. E isso não significa sair correndo. Evitar esforços físicos como correr é importante, porque isso acelera o batimento cardíaco e espalha o veneno mais rápido.

Ah, se a pessoa tiver usando anel ou pulseira no membro picado, retirar esses adornos porque um dos efeitos é o inchaço agudo e pode machucar, além de concentrar o veneno ali.

E tem alguns costumes que os antigos faziam e que não ajudam. O torniquete, por exemplo, foi abolido. Torniquete é pegar alguma corda ou tecido e amarrar o membro que foi picado. Era feito pensando em segurar o veneno para ele não se espalhar, mas o que pode acontecer é que fazendo isso, você concentra o veneno naquele membro, e aí, pode haver necrose e a pessoa perder o membro.

Ingerir bebida alcóolica, que antes se fazia, também não ajuda em nada e pode mascarar os sintomas.

Perfurar o local para sugar também não ajuda. Para fazer sangramento também não. Fazendo isso ainda se corre o risco de aumentar a proliferação de bactérias no local. E com muito respeito a todo tipo de crença, levar para benzer não ajuda.

O que vai de fato salvar uma pessoa de um acidente ofídico é a soroterapia específica, em ambiente hospitalar.

 

Paola Antony_ Guilherme, não sendo nós humanos presas para cobras, quem são então? As daqui do cerrado, por exemplo, o que elas comem?

 

Guilherme Barroso_ Vai depender da espécie. Por exemplo, as cascavéis têm como especialidade pegar pequenos mamíferos, especialmente roedores, ratinhos. Já a caninana tem uma dieta mais generalista. Ela vai se alimentar de aves, ovos, pode se alimentar de lagartos, de pequenos mamíferos também. Ela já tem uma dieta mais ampla. Então ou são generalistas ou especialistas, no caso de se alimentarem de um grupo só de amimais. Inclusive tem uma cobrinha muito interessante aqui na Chapada, que é a Dormideira. O pessoal confunde muito ela com jararaca e acaba matando, mas é uma cobrinha especialista em predar lesmas. Só come lesmas. E lesmas acabam sendo uma praga para gente. Nas nossas hortas e jardins elas fazem um estrago. E as dormideiras fazem um controle natural disso. Mas aí o povo mata e acaba sofrendo com ataques de lesmas em seus jardins e mal sabem que estão matando uma predadora de lesmas.

 

Paola Antony_ Olha só, quem diria. Seria interessante que pessoas que frequentam ambientes mais abertos, de natureza, se dedicassem a conhecer um pouco mais as cobras. Falar nisso, quais são as daqui do cerrado que devemos temer?

 

Guilherme Barroso_ Aqui na Chapada a gente tem quatro espécies que oferecem perigo de acidente para gente. São serpentes de interesse médico. A gente usa esse termo quando a gente sofre um acidente, precisa ir ao hospital e fazer a soroterapia específica.

São elas: a cascavel, duas espécies de jararaca – legal a gente dizer que no Brasil a gente tem aproximadamente 40 espécies de jararaca, mas, aqui na Chapada, apenas duas. Então a gente vai se preocupar com essas três e a coral verdadeira. E dessas quatro eu ainda tiro a coral verdadeira dessa preocupação porque ela é um animal muito raro aqui na região, é um animal que tem uma coloração de advertência – vermelha, preta e branca – então você consegue enxergar ela de longe. É um animal que tem um comportamento bem tranquilo, diferente de uma cascavel que se camufla muito bem e das duas espécies de jararaca com quem a gente deve se preocupar.

 

Paola Antony_ Você diz se preocupar porque a gente pode não ver, não é?

 

Guilherme Barroso_ Exatamente. O perigo é somente esse, a gente não ver o animal e acabar pisando. Porque, ao pisar em um bicho desses, ele naturalmente vai procurar se defender. Agora, o contrário, que é a cobra ver um ser humano e pensar: vou lá picar, aquela pessoa, não acontece de jeito nenhum. Elas não perseguem a gente.


Paola Antony_ Ou seja, é o caso de ter uma atenção visual. Porque é isso, ao estar na natureza é preciso estar atento.

 

Guilherme Barroso_ Esse é o principal ponto. Quando a gente está fazendo uma trilha na cachoeira, já que estamos no habitat delas, o encontro com esse animal pode acontecer. Então, a atenção é a principal medida de precaução. Ver onde estamos pisando e sempre andar pela trilha, porque nela a gente vê onde será o próximo passo. Evitar andar no mato onde a gente não vê. Se formos fazer trilha, devemos estar necessariamente usando um calçado fechado, de preferência uma bota de cano alto. A gente tendo esses cuidados, os acidentes já são bem evitados.

 

Paola Antony_ Sobre o uso da bota de cano alto, você já me disse uma vez que o bote não é muito alto, né? Por isso as botas funcionam.

 

Guilherme Barroso_ Isso é legal de falar também. As cobras que são peçonhentas costumam dar um bote que é 1/3 do tamanho do corpo dela. Então, se a gente ver uma cascavel com um metro, o bote dela vai ser de aproximadamente 30 centímetros. Não é um bote tão comprido assim. Geralmente a gente pensa que vai ser um bote espetacular, que ela vai voar na nossa jugular, mas não é assim. Costuma ser em torno de 1/3 do corpo dela. Cerca de 80% dos acidentes ocorrem do joelho até o pé. Então se a gente está com uma bota de cano alto, evitamos muitos acidentes. Porque se ele der o bote, ela não consegue atravessar a bota e o acidente não acontece. Outra coisa legal de se falar é que se você for mexer com serviço de jardinagem, roçar, capinar, use uma perneira para proteger a região da canela. E se for mexer com lenha, material de construção, com entulho, usar uma luva de couro evita bastante acidente. Então, com esses cuidados evita-se muitos acidentes ofídicos.

 

Paola Antony_ Guilherme, você faz também um trabalho de educação ambiental, não é? Como você sente o envolvimento das pessoas com o assunto?

 

Guilherme Barroso_ Essa parte de levar a informação verdadeira sobre as serpentes é muito importante. Então, aliado ao trabalho de resgate, eu também faço esse trabalho de educação ambiental nas escolas. Eu vou nas escolas municipais da Chapada dos Veadeiros para fazer uma palestra, uma vivência sobre serpentes e poder quebrar esses mitos, esse preconceito que as pessoas têm em relação as cobras. E é muito legal porque o resultado é bem positivo. Às vezes, para os mais antigos, é mais difícil, eles têm a cabeça mais fechada. Para eles, toda cobra é venenosa, não adianta falar. E a gente até entende um pouco, porque essas pessoas antigas perderam parentes por picada de cobra. Antigamente isso era mais comum de acontecer porque o soro antiofídico não tinha em todos os hospitais. Então as pessoas moravam longe do hospital, aí quando sofriam um acidente, tinham que andar horas a cavalo até chegar no hospital e, quando chegavam, não tinha soro e acabavam indo à óbito. Mas hoje em dia, a mortalidade por picada de serpente caiu muito. É muito baixo mesmo, porque o soro já está em vários hospitais. Então, voltando ao trabalho de educação ambiental, é muito gratificante quando, ao final de uma palestra, um jovem vem falar comigo para dizer: “que legal! Eu achava que todas as cobras eram venenosas, que todas iam querer me picar. Mas agora que eu sei, nunca mais vou matar cobra”. Isso é muito satisfatório. Portanto, aliado ao trabalho de resgate, é muito importante esse outro, de educação ambiental, onde a gente leva informações verdadeiras a respeito desses animais.


Paola Antony_ Guilherme, assunto não falta. São muitas perguntas, mas como nosso tempo está acabando, você acha interessante deixar seus contatos?


Guilherme Barroso_ Sim. Meu instagram é: guilhermejahguia. É por lá que eu faço as postagens das serpentes, dos resgates, e também posto muitas curiosidades sobre elas. Então por lá é possível acompanhar meu trabalho e aprender mais sobre esses animais e quebrar o preconceito sobre eles, que são tão incríveis e que merecem todo nosso respeito.

Paola Antony: Muito obrigada por essa aula, Guilherme. Pra mim foi um grande aprendizado e uma oportunidade de compreender que é possível conviver de forma respeitosa com esses animais.


Guilherme Barroso_ eu que agradeço a oportunidade, Paola. Seguimos aqui na missão. Cobra boa é cobra viva!

 

Ao longo da conversa ouvimos algumas músicas escolhidas pelo Guilherme que estão em Dois álbuns – O Cassia Reggae e Jah van.

Do Cássia Reggae ouvimos: ”Palavras ao Vento” com Tony Garrido, “Segundo Sol”com Gilberto Gil, “Lanterna dos Afogados” com Nando Reis e com Chico Chico, “Coronel Antônio Bento”.

Já do disco Jahvan ouvimos: “Sina” com Arnaldo Antunes e Rincon Sapiência, “Nem um dia”, com Chico césar e “Meu Bem Querer” com Seu Jorge e Black Allien.


 



A Rádio Eixo conta com o patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal. FAC – DF.

 

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