Miguel Simão
Uma arquitetura em pedra, água e ar
Miguel Simão, professor de escultura da UnB, por muito tempo dividiu seu ateliê com uma ou duas gerações de aprendizes, novos e novos alunos a cada semestre. Nos últimos meses, o mestre enfim pôde se espalhar numa casa do Varjão reformada e transmutada em ateliê, sala de exibições, centro cultural.
A Casa Aerada pode ser encontrada pelo entusiasta da arte entre barzinhos, residências de planta térrea e recém-erguidos prédios de três ou quatro patamares. Sentado num dos bancos do jardim de Simão, o visitante vislumbra a prosaica
movimentação da vizinhança. Quadra 1, conjunto B, Varjão. Sentado no outro banco, no entanto, a perspectiva muda e o visitante se percebe aos pés de um maciço de pedra diante do qual a rua se vê obrigada a fazer uma curva.
De certa forma, esse maciço parece dar conta tanto da forma como agimos sobre o solo do Planalto Central, levantando cidades e espalhando bairros populares, quanto da própria atividade de Miguel Simão, o homem debruçado sobre o bloco de pedra.
Simão serve-se da Casa Aerada como um escultor se serve de um bloco de pedra. Uma arquitetura pensada em cada recôndito e desvão, a partir de dois grandes espaços que se completam e se alimentam no dia a dia de um artista — a sala de exposição aberta aos apreciadores da arte — o ateliê de trabalho aberto às múltiplas atividades de Simão.
Uma bancada quase contínua segue uma das paredes do ateliê. O que parece ser apenas uma única e comprida mesa para atividades manuais, no entanto, guarda uma dinâmica aperfeiçoada pela prática. Uma lógica interna. Perceba que, neste ponto, Simão trabalha com cera para fundição. Ali adiante, ele lida com gesso para moldes e peças. Do outro lado do tanque, água, barro e cerâmica. Ferramentas para talhar pedra. E máquinas afiadas para cortar madeiras de diferentes diâmetros.
Cera, gesso, barro, pedra e madeira — resta o fogo — o fogo neste momento está devidamente guardado, adormecido no ventre do botijão de gás, ao lado da rede de balanço.
Algumas obras de Simão podem ser vistas logo na entrada, pontuando as plantas do jardim. Quase ao rés do chão. Quando a grama está alta, nota o dono de casa, elas por pouco não desaparecem. Era esta a sua intenção: um jardim de esculturas que não fosse propriamente um jardim de esculturas.
Num dos cantos do jardim, esculpido em solene mármore branco, um falo flácido aponta para o chão. Um pouco adiante, uma vagina pisca para o céu de novembro, talho mínimo aberto por Simão numa pedra de aluvião encontrada em Goiás Velho. Esculpida pela ação da água durante imemoráveis eras geológicas, tornou-se um aleph.
O olho que tudo vê, a pedra que tudo guarda.
Texto Bernardo Scartezini
Fotos Dalton Camargos