Courinos
Pinturas arrancadas pela raiz
Há algo de muito simples nas imagens de Courinos. Uma folha, uma mulher, um peixe. Vasos e pares de sapatos. Há também qualquer coisa de indecifrável.
Uma pintura sem ponto de fuga, sem horizonte, sem chão. Uma pintura de elipses. As figuras de Courinos habitam um lugar fora do lugar — um tempo fora do tempo.
Camilla Antunes, a artista brasiliense que estou aprendendo a conhecer nos últimos anos como Courinos, conta que seu nome artístico veio emprestado do sobrenome paterno. Seu bisavô deixoua Grécia para trabalhar em Abunã, distrito de Porto Velho. Ali ajudou a deitar uma estrada de ferro — que já não se usa mais.
Ela conta que esteve apenas três vezes em Rondônia. Lembra de espiar lá embaixo a floresta pela janela do avião. Lembra de não encontrar árvore alguma deixada de pé dentro de Porto Velho. Lembra de uma cachoeira em que tomou banho — hoje uma
hidrelétrica.
Há algo de amazônico em Courinos. Algo do calor de uma floresta que não se pode enxergar — daqui onde se está — apenas sentir na pele seu bafo quente úmido.
Courinos conta também que suas tias são bordadeiras — a família da mãe é goiana — mas que ela própria não consegue seguir o devido padrão para bem bordar.
Quando toma um pequeno tecido para trabalhar, em vez de bordar, ela faz dele uma aquarela. Quando tem uma tela grande para trabalhar, bem, aí ela pode se espalhar.
Courinos na tela grande pinta as mesmas figuras que pintaria numa tela diminuta — porém as figuras ficam maiores, maiores, maiores. Diante de uma tela grande, Courinos executa os mesmos gestos que executaria sobre uma tela pequena — porém os gestos
ficam mais largos, mais largos, mais largos.
Seu desenho é quase infantil, no que traz de linhas ligeiras, formas simples, assuntos ao alcance da mão. Sua pintura não é muito diferente de seu desenho. E se suas imagens às vezes parecem inacabadas é porque já terminaram.
Há um tríptico de Courinos em que gosto de enxergar uma paisagem vertical. A tela do alto com quatro pinceladas de um azul esverdeado, desbotado, para quem quiser ali um céu. A tela do centro, um relevo numa única linha e sete pontos de tinta avermelhada,
uma montanha, até imagino um vulcão, porque já vi que Courinos desenha vulcões com certa insistência. A terceira tela, por fim, mais embaixo, pode ser uma cerca, um cercadinho, dependendo do encaixe do olhar de quem vê, o chão sem chão.
Nesses trabalhos, um descuido na preparação da tela acarretou um efeito não desejado. A tinta óleo deixou rastro, imprimindo em suas bordas uma espécie de halo sobre a tela, uma sombra química imprevista. Courinos entende que o erro trouxe uma expressividade e uma materialidade que lhe interessaram. E também não teria sentido, ela acrescenta, pintar de novo o que já havia sido pintado.
Há uma outra tela de Courinos em que se emparelham três vasos num plano imaginário. O vaso do centro, amarelo, parece estar um pouco mais afastado, mais para trás que os demais. Mais do que as formas, são as cores que aqui equilibram a pintura e lhe emprestam um centro gravitacional.
Courinos também trabalha com cerâmica. E a cerâmica, ela apontava em nosso encontro, é uma tecnologia criada a partir de terra, água e fogo.
A primeira intuição ao se modelar com argila é fazer com os dedos um objeto côncavo, como um vaso. Assim como o primeiro objeto a ser representado, nas aulinhas de desenho, bem pode ser uma garrafa ou uma maçã. Vasos, garrafas e maçãs daqui nos levam a Morandi e Cézanne — e a toda história da pintura ocidental. Nos levam aos antepassados do bisavô grego de Courinos.
Poderiam ser somente pinturas sobre pinturas sobre pinturas. Objetos triviais que, de tão manjados, já nos restam vazios e domesticados, esgotados e bocejantes. Courinos, no entanto, os traz de volta à vida, reinventados e recuperados, ainda sujos de tinta.
Thomas Higginson, editor literário, foi um dos primeiros leitores de Emily Dickinson. Assim ele descreveu o trabalho da poeta: “versos arrancados pela raiz, ainda impregnados de chuva, orvalho e terra”.
As pinturas de Courinos parecem arrancadas pela raiz.
Texto: Bernardo Scartezini
Fotos: Dalton Camargos
Brasília, janeiro de 2021